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sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Tú padre...


Um dia como qualquer outro. O barulho das crianças que brincavam na rua, os cachorros que latiam e todos os barulhos cotidianos de minha vila, avisavam-me que seria um dia como os demais.

Busquei meu jornal. Segui até a sala, sentei-me na velha poltrona que pertenceu a Vovô. No jornal, relatos e mais relatos das mortes do dia anterior. Não compreendia porque me detive exatamente naquilo, talvez fosse o medo de um dia ter o meu falecimento relatado naquelas páginas.

Fui até a cozinha. O gato dormia tranquilamente depois de uma noite de vadiagem. Tomei meu café, e voltei à sala. O telefone tocou, rompendo todo o marasmo daquela manhã. Uma voz grossa, um tanto assustada, carregada de um sotaque espanhol dizia:

- padre se morrió!

- Quem esta falando? Que conversa é essa?

- Es verdad, el cuerpo estas no bar, llamado Don Sebastião. – desligou sem mais informações.

Corri a janela e dei uma espiada, Papai tinha uma quitanda em frente de minha casa. Percebi que o movimento era normal, as senhoras escolhiam suas verduras, e as crianças cutucavam as frutas. Da janela em que eu estava não conseguia ver Papai, mas tranqüilizei-me, pois se a quitanda encontrava-se aberta, ele certamente estaria lá, afinal, nunca confiou que Sandro, seu ajudante, fosse capaz de ficar sozinho no balcão.

Voltei à poltrona, peguei meu jornal e continuei lendo. O acontecido não me abalou, apenas criou pensamentos desagradáveis, mas estava certo que a ligação era um trote. Papai trabalhava.

Deixei o jornal de lado e comecei a pensar na vida, ou melhor, na morte. Pensei também em Papai, senti um aperto no peito. Resolvi, então, que iria ao tal bar e diria poucas e boas ao Espanhol. Onde já se viu brincadeiras desse tipo? Tanto ele quanto eu não estávamos mais na idade de tais coisas. Mas detive-me.

Decidi visitar Papai, me vesti de maneira adequada, e antes de sair dei uma nova olhada pela janela, para conferir o movimento. Já não havia uma alma sequer em frente à quitanda, estranhei, entretanto lembrei que Papai deveria ter fechado para almoço. Preferi não incomodar, e voltei à sala. Quando de repente o bichano entrou exibindo o cadavérico almoço que acabara de pegar. Pobre rato!

Eu era o único que não sentia fome. O telefone tocou novamente:

- padre...

Desliguei antes que a frase fosse terminada. Coisa de mau gosto, pensei eu, esse senhor está precisando que alguém lhe aplique um belo corretivo. Sai certo de que colocaria um ponto final naquela situação. Atravessei a rua e encontrei Sandro, ele parecia querer dizer algo, porém deteve-se. Entrei na quitanda, e constatei a ausência de Papai. O rapaz avisou-me que na noite anterior meu pai havia pedido que ele abrisse a quitanda. Fiz um sinal de que estava tudo bem e sai. De certo Papai devia ter consulta médica marcada.

Segui pelas ruelas que davam no bar Dom Sebastião. Como um gato que encurrala o rato, queria pegar aquele Espanhol e lhe dizer umas verdades.

O bar encontrava-se fechado, bati na porta. Ninguém atendeu. Insisti por mais duas vezes, e nenhuma resposta. Desisti e voltei a minha casa, procurando acalmar-me no caminho.

Em casa, servi-me do restante de café que ainda se encontrava no bule, sentei-me na poltrona a fim de esquecer tudo que ocorreu. Contudo, o telefone fez questão de interromper meu momento:

- Tú padre se morrió.

Por: Vanessa Rodrigues

QUANDO EU MORRER

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.


(Mário de Andrade)