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terça-feira, 18 de maio de 2010

Uma ceia, adeus...

 "Em noite de paixão há traidor e traído, existe o amor, e ele dói."


Em noite de paixão servir, calar-se e dar a face a beijos esbofeteados, ou, a bofetadas que estalavam como beijos. Na penumbra os sons fundem-se. Em noite de paixão que não se compreende o mistério. Um enigma que pertence a dois, pertenceu a doze, e pertencerá a quantos mais se dispuserem a vivenciar seus martírios e glórias. Em noite de paixão há traidor e traído, existe o amor, e ele dói. Suspende em plenos ares a certeza que não quer, não pode ser revelada, mas existe e pulsa como o sangue nas veias. Ambos sabem de sua existência, porém a ignoram até o fim. O arcano permeia os últimos olhares durante a ceia, a última de Joana e Tadeu.
A toalha de branco linho posta na mesa. Tadeu em camisa de linho posto a observar tamanha cerimônia. Sentiu-se importante. Observava a rica porcelana dos pratos, arabescos dourados, talheres polidos. Tamanha cerimônia. Da cozinha vinha um cheiro nunca dantes sentindo, que impregnava as narinas, atiçava vísceras e estomago. Tadeu não compreendia o porquê de tanta preparação. Criatura insana, apanha e ainda me agrada, por isso iras ser sempre o que é, um nada, apenas uma mulher. A cada ruminada de pensares e pesares, acreditava-se mais certo, abandoná-la.
A refeição pretexto, cordeiro expiatório da hora derradeira. Um ensejo em que a vítima tornar-se-ia algoz. Jantar a mesa, saboroso como outro antes não houvera entre aquelas partes. Poucas palavras, pratos generosos. Um sorriso surgiu faceiro na face de Tadeu. Joana apenas observava com seu licor a mão. O cálice ganhava tons brilhantes, fulgurais graças ao reflexo do velho lustre da sala. Brindemos a eterna efemeridade dos amores, era o que dizia aquele olhar feminino. As mãos tremulas de quando em quando levavam o garfo a boca. A comida roçava os dentes de um lado a outro, perdurando mais do que deveria para ser engolida. Talvez fosse a falta de apetite, afinal beliscara e provara os pratos durante o preparo, talvez a beleza de Tadeu a deixara farta, suas formas abrutalhadas, suas falas e farsas. Corou-se nesse momento por odiá-lo. Compreendia seu fastígio, era o rancor que latejava em seu interior, preenchendo-a.
O relógio apontou a Tadeu que sua hora aproximava-se, ele grosseiramente limpou os lábios no delicado guardanapo bordado a mão. Dirigiu-se até Joana, bebericou de seu licor, beijou-lhe a testa com carinho, apertando aquele rosto languido entre as mãos. Sorriu, foi tomado por uma sensação adversa que lhe tirava o fôlego, tentou recobrar-se, balbuciou algo. Fitou o relógio, estavam a sua espera. Caminhou até a porta, fez um gesto para abri-la. Joana observava a cena imóvel, fria, não exprimia reações, aquela que muito amou, estava oca. Ela iria a fundo, faria tudo, seria o fim... O fim de uma vida de migalhas, mil falhas e que ela sempre fora tão complacente. Aproximava a hora do sacrifício.
Tadeu voltou-se a ela agonizante. Ela lhe deixou cair uma lágrima, e Tadeu deixo-se cair, sufocado em sua gula, em seus engodos e falatórios. Caiu mais um homem, logrado por quem ele sempre iludiu.

Vanessa Rodrigues
Imagem: Mesa posta (harmonia em vermelho), de Henri Matisse

2 comentários:

Gabriel Bertonni disse...

... m enigma que pertence a dois, pertenceu a doze, e pertencerá a quantos mais se dispuserem a vivenciar seus martírios e glórias...

e tú menina a brincar vivencias em tua carne mistérios tais, como o dom de nos encantar.

Cada dia escreves mais forte e vivaz, funde-se aos textos e transpõem a essência delicada e forte de que és feita!

Beijos!

Eliéser Baco disse...

Concordo com o Gabriel.. minhas palavras apenas fariam eco...